quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Aos 80 anos, bancário aposentado coleciona mais de 7 mil discos




Publicado originalmente no site NDMAIS, em 5 de janeiro de 2020 

Aos 80 anos, bancário aposentado coleciona mais de 7 mil discos

Aposentado da Caixa Econômica Federal, Orivaldo dos Santos é filho de violonista amador e coleciona LPs há seis décadas

Por Marcone Tavella

Mais de 7.000 discos de vinil separam o bancário aposentado Orivaldo dos Santos, 80 anos, dos dias festivos e instrumentais que embalaram sua juventude.

Algumas das músicas de sua coleção preenchiam os vazios do antigo casarão da família Santos, situado no nº 55 da Rua Lages (atual General Vieira da Rosa), na parte baixa do Morro da Caixa, na Florianópolis provinciana da primeira metade do século 20.

Saxofonistas, percussionistas e outros músicos da vizinhança eram atraídos pelo dedilhar habilidoso de Manoel José dos Santos, um violonista autodidata que sabia aproveitar as folgas do trabalho como marinheiro na antiga Companhia Hoepcke.

Os encontros animados, convidativas também ao som do cavaquinho, bandolim e outros violões, eram consentidas, quando não incentivadas, por Maria Isabel dos Santos. A mãe de seis Santos, dos quais tinha Orivaldo como caçula, inspirou a composição da valsa “Zizinha”, canção tirada das cordas do violão de seu marido.

Ao recordar-se daqueles dias, em meio ao acervo particular que ocupa um cômodo inteiro de sua residência, Orivaldo sugere que estaria disposto a trocar todas as 10 mil canções de seus preciosos vinis por uma chance de ter gravado a melodia que conectava o pai a sua mãe.

“Era uma homenagem muito bonita, uma valsa lindíssima, que lembrava algumas das canções tocadas por Dilermando Reis”, comparou.

Sem paciência suficiente para aprender a tocar algum instrumento, o hobby de colecionar discos acabou por suprir os silêncios da vida adulta, de homem casado, funcionário da Caixa Econômica Federal, pai de quatro filhos.

O primeiro álbum de sua coleção foi adquirido em 1961, aos 22 anos, intitulado “Ritmos de nossa terra – Viagem musical com… Vanja Orico”. A artista carioca ficou famosa pela brilhante atuação no filme “O Cangaceiro” (1953), primeiro longa brasileiro a ganhar as telas do mundo, premiado como melhor filme de aventura e melhor trilha sonora no Festival Internacional de Cannes.

Com o vinil da musa embaixo do braço, Orivaldo pode tietá-la 30 anos mais tarde, em março de 1991. “A TV Manchete estava gravando cenas de uma novela na Ilha de Anhatomirim e Vanja estava hospedada com o elenco em um hotel da Cachoeira do Bom Jesus. Fui até lá e consegui conversar com ela. Era ainda muito bonita e ficou admirada por reencontrar uma cópia do disco que considerava sumido”, contou ele, ao exibir orgulhoso o autógrafo assinado na capa do álbum, datado de 8 de março de 1991.

Compras e doações formaram um acervo eclético

Orivaldo reconhece a influência do pai na escolha das primeiras dezenas de discos da coleção, com obras de músicos instrumentais do porte de Altamiro Carrilho, Jacob do Bandolim e Valdir Azevedo.

Já a aquisição de outros álbuns, datados dos anos 1960 e 1970, ele deve às horas que dividia com a irmã, ao pé do rádio de casa, com apresentações inspiradas de artistas como Francisco Alves, Orlando Silva, Carlos Galhardo, Silvio Caldas, Inezita Barroso, entre outros.

As compras eram feitas em lojas da rede Brunetti Discos, encontrada em vários pontos do Centro, na Ás de Ouro e Fabi Discos, localizadas na Rua Felipe Schmidt, além de sebos e feiras pela cidade.

“Raramente comprava lançamento. Esperava que as lojas colocassem vários LPs em liquidação”, contou.

Na medida em que o acervo aumentava em volume, Orivaldo passou a receber doações e presentes de amigos e familiares, tornando cada vez mais eclética a coleção. Clássicos nacionais, internacionais, músicas folclóricas, latino-americanas, trilhas de filmes, rock, jazz, forró e até sertanejo raiz formaram a pilha.

Somente do espólio do tio Vitor Lima (desembargador que dá nome à rua que contorna a UFSC via Igrejinha), vieram 2.560 discos de 12″ (tamanho médio), destinados a ele pelo primo Dunstano Martins Lima, que o entregou no dia 24 de dezembro de 2002. “Foi um dos melhores presentes de Natal que recebi”, recordou-se.

Colecionador quer deixar discos para pesquisa e sonha expor capas em 2020

Viúvo da terceira esposa há menos de um ano, Orivaldo dos Santos tem dedicado mais tempo na tarefa hercúlea de catalogação de seu acervo, iniciada em 1980. Seu método segue um padrão próprio e minucioso, com registros feitos música por música.

As fichas incluem informações como título, nacionalidade, ano em que foi escrita e gravada, nome dos autores, nacionalidade dos autores, além de observações próprias.

Um dos seus tesouros é um tango chamado “Florianópolis”, composto pelo argentino Pierino Codevilla, que ele possui em dois LPs de sua coleção. Um deles leva o nome “Recuerdos de Buenos Aires” e foi gravado pelo artista paraguaio Hermínio Gimenez, que se exilou na Argentina durante a ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989).

Outra relíquia é uma coletânea com Carlos Gardel e Libertad Lamarque, gravada em 1982, que leva junto da embalagem um cartão assinado pela cantora argentina, direcionado ao seu irmão falecido Emiliano, de quem Orivaldo herdou o disco. Ícone portenha, com carreira no México, Libertad apresentou-se no Teatro Álvaro de Carvalho, em Florianópolis, em 1991.

Dessa forma, associando cada álbum e música com alguma lembrança afetiva, a catalogação está próxima de superar os 7.000 álbuns. O colecionador estima que tenha ainda cerca de 400 vinis para fechar a conta de seu patrimônio incalculável.

Finalizado o levantamento, o colecionador pretende deixar o acervo à disposição a algum pesquisador ou instituição que possa preservar seu trabalho.

Para 2020, em virtude do 60º aniversário da Apcef-SC (Associação do Pessoal da Caixa Econômica Federal de Santa Catarina), entidade que é sócio, Orivaldo tem como meta viabilizar uma exposição de algumas capas de LPs no Museu da Imagem e do Som, do CIC.

Vinis voltam à cena

Dominante como principal meio de gravação musical até os anos 1990, o disco de vinil sofreu um abalo com a chegada dos CDs. A sobrevivência da mídia deveu-se à resistência de colecionadores, pequenos comerciantes e conquista de novos consumidores, que garantiram o cenário promissor que se apresenta aos bolachões, 30 anos depois.

Jornalista com larga experiência no meio Cultural, Marcos Espíndola observa que o produto deixou de remeter ao passado e tem ganhado cada vez mais adeptos entre jovens que cresceram ouvindo MP3.

“Ao invés de matar de vez o vinil, como muitos imaginavam, a música digital e os streamings de áudio acabaram por interferir muito mais nos CDs, que não tinham o mesmo caráter estético”, analisou.

Levantamento recente da Recording Industry Association of America’s mostrou que os LPs obteve crescimento de 12,9% na primeira metade de 2019 e a previsão era de que até o final do ano superasse a venda de CDs pela primeira vez desde 1986.

Proprietário há 28 da loja ROOTS Records, Luiz Antônio Menegotto, 56, acompanhou esse movimento de desprezo e reconquista dos consumidores de música com o vinil. “Quando o CD se popularizou de vez, era comum ver pessoas jogarem fora discos, trocando vitrolas por aparelhos de som. Hoje, não são poucos os artistas que lançam junto o CD pela gravadora e o prensado pela Polysom (empresa brasileira e única fabricante da América Latina)”, comenta.

O interesse por música e cinema empurrou Orivaldo ao palco, aos 50 anos

Não fosse Orivaldo um sujeito tímido e despretensioso, teria alcançado maior fama no meio cultural catarinense. O apreço por apresentações artísticas e manifestações culturais, que foi incutido nele ainda no berço, determinou uma vida de relação estreita e contínua com a Cultura.

Nas horas vagas do trabalho burocrático como escriturário da Caixa Econômica Federal, o filho de Manoel e Maria Isabel estava no cinema, assistindo peças de teatro ou ouvindo um vinil na companhia de familiares e amigos.

Sua curiosidade e interesse por cultura determinou uma fase em que ele assumiu dois empregos. Por alguns anos, segundo ele, dividiu o dia entre o expediente no banco e cumprindo horas na função de discotecário e programador das antigas rádios Jurerê e Anita Garibaldi.

“Nos anos 1960, apresentei um programa na Rádio Guarujá, chamado ‘Melodias da Tela’, que passava somente trilhas de filmes do cinema”, disse, sem vaidade.

Uma das gavetas do cômodo que guarda sua coleção de discos de vinil, reúne alguns roteiros de documentário que ele pretendia gravar com sua antiga Câmera Super-8. Dos takes e planos feitos com o equipamento, renderam oito rolos de filme que ele emprestou para o acervo da UFSC, anos atrás.

Prestes a se aposentar na Caixa, no final dos anos 1980, entregou-se ao teatro amador para viver uma experiência que ele considera das mais importantes de sua vida.

Texto e imagens reproduzidos do site: ndmais.com.br

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