Crédito da foto: Divulgação
Publicação compartilhada do site RADAR SERGIPE, de 12 de abril de 2022
Artigo: Elifas Andreato e as coisas que aprendi nos discos
Por Eduardo Oliva
Se hoje é o Google a maior fonte de informações “correta ou não, branca, suave, muito limpa, muito leve”(Belchior) ou até muito falsa, foram os discos, nos anos 70 do século que passou, o principal instrumento para se formar consciências, tomar atitudes, dizer as coisas e mexer com corações e mentes, enfim, o grande condutor da cultura daqueles tempos. Sou da geração do vinil, da juventude que esperava os LPs para se deleitar com os encartes muito bem trabalhados e escutar, muito mais que simplesmente ouvir.
Escutar discos não era o ouvir de hoje onde o dizer das letras soa como uma realidade sem sentido nem metáforas, pontuando talvez uma alucinação coletiva onde o escutar faz muito pouco sentido. A palavra alucinação é também emblemática para pontuar o momento em que floresce tantas idéias fascistas, a mediocridade impera e pede-se até a volta do arbítrio.
O que se vê hoje tem muito do que foi anunciado há quase cinquenta anos quando em 1976 Belchior lançou “Alucinação”: sua música e poesia soaram como algo inusitado ao que se ouvia. Belchior chegou dizendo “eu quero é que esse canto torto feito faca, corte a carne de vocês”.
Vendo o mundo de hoje onde a mediocridade triunfa, a vilania assume um papel quase natural se pode observar como os discos foram fundamentais na formação de uma consciência crítica brasileira que, entretanto, não se afirmou como legado definitivamente consolidado.
Nos anos da ditadura onde a censura imperava, Belchior cantou como se reconhecesse a vitória da estupidez e dizia: “cuidado, meu bem, há perigo na esquina, eles venceram e o sinal está fechado prá nós que somos jovens” e arrematava: “minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais...”.
No final dos anos 60 e início dos anos 70 o mundo vivia em tremendo rebuliço. Na Europa, dois anos antes os estudantes armaram as famosas barricadas de Paris, fazendo explodir nas ruas uma contestação que ia para além do mero protesto contra o governo do General De Gaulle. No ano seguinte na cidade de Bethel, no estado de Nova York nos Estados Unidos o Festival de Woodstock foi a mais completa tradução da contracultura e o evento símbolo da geração hippie. O rock and rol, uma invenção dos anos 1950 explodiram e os Beatles e os Rolling Stones eram como ainda hoje são amados.
Os discos eram uma síntese de toda a cultura que se vivia e não eram somente o que deles se extraia musicalmente. Passaram a ser também um grande instrumento das artes gráficas, onde artistas trabalhavam metáforas, idéias, um mundo para além do imaginário. Quem, da geração 70 ou 80 não se lembra da antológica capa do LP “The dark side of the moon” ("O lado negro da lua") do Pink Floyd por muitos conhecido como o disco do prisma onde um feixe de luz atinge uma pirâmide e transforma-se em um arco-íris?
A indústria fonográfica, contudo mudou. O próprio nome já nem faria sentido se fosse considerar a palavra “grafia” que é a representação escrita de uma palavra e que tinha nos discos para além da gravação sonora também os encartes. Os discos praticamente já não existem como objeto de consumo. Hoje os chamados streaming, as plataformas digitais expulsaram os discos e com ele os encartes e as capas que muitas vezes antecipavam o que os discos teriam a dizer.
No Brasil um artista gráfico pontuou, nos discos, acima de todos os demais. Foi o paranaense Elifas Andreato, morto essa semana aos 76 anos (dia 29/03) e que legou à cultura brasileira mais de 700 ilustrações e foi o responsável por mais de trezentas capas de artistas do naipe de Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Chico Buarque, Clara Nunes, Elis Regina, Adoniran Barbosa, Clementina de Jesus, Vinicius de Moraes e Toquinho. Também criou capas de livros, cartazes para peças de teatro e, por sua mensagem, foi perseguido pela ditadura militar.
Quando se for olhar para o que se produziu de cultura nos últimos cinquenta anos toda a exuberância da obra der Elifas Andreato vai dizer muito justamente em capas de discos, onde lá estará em exuberantes ilustrações um pedaço importante da história da cultura do país principalmente a história da resistência, ao arbítrio e ao banal pela genialidade de um dos maiores artistas gráficos que esse país já teve.
Texto e imagem reproduzidos do site: radarsergipe.com.br
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